CABEÇA DE NEGRO

AUTO DOS CONGOS EM FORTALEZA

OS CONGOS - João Nogueira

In Fortaleza Velha, Imprensa Universitária da UFC, CE, 1981.

Quem já deu mais de sessenta voltas ao redor do sol encontra grande agrado e gosto em recordar o passado. Relembrando sucessos antigos, dirigimo-nos aos velhos porque estes nos entendem. Latini latine loquor. Os moços, porque são moços, não encontram interesse algum em coisas muita caras aos velhos; entretanto, aqueles que conseguiram acompanhar por largo tempo esta grande borboleta que chamamos Terra, depois de muitas voltas, irão, por sua vez, comentar com saudade e interesse fatos mínimos de hoje ou costumes e usanças, que o tempo haja devorado.

Melo Morais Filho, no seu primoroso livro sobre Festas e Tradições Populares do Brasil, descreve com pena erudita e poética os folguedos com que os nossos maiores celebravam os Natais, a Semana Santa, os casamentos, o Dia de Finados, etc. Entre os folguedos do Natal, pinta com vivas cores o Auto dos Cucumbis, da Bahia, também chamados Congos nas outras províncias do Brasil; e resume, nestes termos, o entrecho do baleto dos Cucumbis. "Depois da refeição lauta do Cucumbi, comida de que usavam os Congos e Munhambanas, nos dias da circuncisão de seus filhos, uma partida de Congos põe-se a caminho, indo levar à Rainha os novos vassalos que haviam passado por essa espécie de batismo selvagem." "O préstito, formado por príncipes e princesas, augures e feiticeiros, intérpretes de dialetos estrangeiros e inúmero povo, levando entre alas festivas os mametos circuncisados com lasca de taquara, é acometido por tribo inimiga, caindo flechado o filho do Rei."

"Ao aproximar-se o cortejo, recebendo a notícia do embaixador, ordena o soberano que venha à sua presença um afamado adivinho, o feiticeiro mais célebre de seu reino, impondo-lhe a ressurreição do príncipe morto." "Ou darás a vida a meu filho, diz ele, e terás em recompensa um tesouro de miçangas e a mais bela das mulheres, ou não darás e te mandarei degolar." "E aos sortilégios do feiticeiro o morto levanta-se, as danças findam, ultimando a função ruidosa retirada na qual os Cucumbis cantam o Bendito e diversas quadras populares." Quem assistiu aos nossos antigos Congos e deles se recorda verá quão diferentes eram dos Cucumbis da Bahia e do Rio. O Auto dos Cucumbis tinha uma seqüência, ao passo que o dos nossos Congos não tinha um seguimento razoável; e certas cantarolas não vinham a propósito do que se fazia em cena. Eram precisamente estes disparates, pontilhados de frases idiotas, que faziam rir a bom rir as pessoas que assistiam a essas folganças, as quais deslumbravam os meninos pelos vestuários reluzentes dos personagens.

A Corte do nosso Rei de Congos era muito reduzida em comparação com a dos Cucumbis." Tínhamos o Rei, o Príncipe Sueno, o Embaixador, o Secretário, os Congos (soldados e cantores) e os Conguinhos, meninos que reforçavam o coro dos Congos. Ao todo umas vinte ou trinta figuras. O Rei trazia coroa rutilante, manto de belbutina escarlate, colete verde, calções azuis e calçava sapatos de entrada baixa. À cintura trazia uma espada. O Príncipe trajava de modo idêntico, bem como o Secretário, que usava um chapéu de abas largas ornado de conchas brilhantes. O Embaixador se apresentava de capa e espada; e os Congos vestiam uma espécie de bolero e um saiote curto, armado ao modo do das bailarinas. Acompanhavam as cantorias com pequenos maracás; e um tambor as acompanhava também, mas, às vezes, com tal estrondo que não deixava se perceber bem o que se cantava.

Os vestuários eram recamados de vidrilhos, lantejoulas e espelhinhos, que brilhavam à luz vermelha dos archotes e dos candeeiros de azeite de carrapato. Que deslumbramento para os meninos da pequena e moderada Fortaleza de outrora! De lembrança e por informações de pessoas do tempo reconstruímos, aproximadamente, os Congos, como eles se apresentavam até 1880. Por muitos anos foi Embaixador o preto Joaquim Xavier, que tinha perdido um braço no Paraguai. No seu papel falava com autoridade formidável. Fazia lembrar o célebre Ronqueira, de quem ainda falaremos. Também por muito tempo fez de prinspo Sueno outro preto a quem chamavam Putrião, por causa de um lobinho que tinha no nariz e que lhe dava, quando olhado de perfil, semelhança com esse pássaro do Amazonas.

O bom preto se molestava com este apelido; e como em certa noite lhe atirassem do meio do povo, armou-se um barulho enorme: houve musga de pancadaria em que trabalharam, de rijo, as espadas e facões dos Congos. A polícia proibiu então que eles continuassem a dançar com estas armas, permitindo-lhes somente que o fizessem com facões e espadas de pau. Uma desonra! Xavier e Putrião, que aliás não eram mais homens, tais empenhos moveram que a autoridade policial revogou sua ordem. Pelos anos de 1850 a 60 ainda conservavam muitas palavras de línguas africanas, que misturavam com português estropiado. O Rei, assentando-se no trono, abria o Auto dizendo com voz de araponga :
Rei - Ê Gonguê!
Coro - Ê Gongá
Rei - A lerê lerô lerê
Vamo lá, vamo lá tê
Alevanta mezi fi
Qui tem munto qui dizê
Vai fazê a ginitrinha
Bem fêta e bem fazida
Qui estes necessitados
Fique de boca embambacato
E de oio engrangarato


E nesta meia língua continuava a representação, ao som de melopéias bárbaras, de maracás e de ganzás. Mas já por 1880 a cantoria dos Congos havia perdido esse tom acentuadamente africano, já diziam suas prosas em algaravia em que predominava o português e aproveitavam, para seus cantares, certas solfas que andavam no ar. Desde o princípio, os Congos dançavam pelo Natal, saindo pela primeira vez na Noite de Festa, quando iam dançar em frente à Igreja do Rosário, em honra à Virgem desta invocação, depois do que iam representar, a chamado e mediante paga, em frente das casas de famílias. Em caminho para o Rosário cantavam :

Secretário - Os pretinhos dos Congos
Pra onde vão?
Coro - Nós vamo pro Rosário
Festejá a Maria